No contexto atual o mundo cibernet reprenta um importe meio de divulgação das nossas experiências...
A Cibercultura e o Surgimento de Novas Formas de
Sociabilidade
Trabalho apresentado no GT "Nuevos mapas culturales: Cyber
espacio y tecnologia de la virtualidad", na II Reunión de Antropologia del
Mercosur, Piriápolis, Uruguai, de 11 a 14 de novembro de 1997.
Fonte:
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documento: http://www.cfh.ufsc.br/~guima/ciber.html
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http://www.cfh.ufsc.br/~guima/ciber.html
Mário José Lopes Guimarães Jr.
Introdução
De uma forma muito geral, podemos identificar, em relação aos
estudos sobre a Internet [
1], duas posições.
A primeira a considera como um fenômeno total, analisando-a em bloco e tecendo
considerações à respeito de suas relações com a sociedade, também considerada,
na maior parte das vezes, como um todo. A segunda, parte do pressuposto de que a
Internet, mais que constituir-se em um artefato tecnológico inovador,
estabeleceu um novo espaço e tempo de interação social, dentro dos quais emergem
formas novas e diferenciadas de sociabilidade. Estas, não são homogêneas, nem no
que diz respeito à própria Internet, tampouco no que tange às suas relações com
o mundo "real".
Neste ensaio, pretendo fazer o apanhado de algumas idéias que
vão na direção da segunda postura, que me parece mais adequada para considerar
os fenômenos que estão relacionados à cibercultura. Tentarei também levantar
algumas possibilidades de estudo, considerando a abordagem antropológica como
privilegiada para esta tarefa.
Inicio com uma brevíssima consideração à respeito de certos
termos e conceitos cuja definição é fundamental para orientar o tratamento da
questão. Logo em seguida, realizo algumas considerações à respeito da adequação
dos instrumentos analítico/interpretativos da Antropologia para o estudo do
tema. Concluo com o esboço de um projeto de pesquisa: o namoro na
Internet.
Ciberespaço / Cibercultura: Discussão de
conceitos
Nas pesquisas sociais, uma das primeiras questões que devem ser
pensadas é a da construção do objeto de estudo. De acordo com Bourdieu, os
objetos da Ciência Social não estão "prontos", mas devem ser construídos, a
partir de um determinado referencial teórico que irá orientar o trabalho
analítico:
"Un objeto de investigación, por más parcial y parcelario que
sea, no puede ser definido y construido sino en función de una problemática
teórica (...)" (Bourdieu, 1978: 54, grifo do autor).
Portanto, antes de considerarmos a Internet como tema de
estudo, e para que possamos construir, a partir deste tema, um objeto, é
conveniente que sejam feitas algumas considerações conceituais, no sentido de
tornar claro o referencial sobre o qual se desenrolarão as reflexões.
A Internet, conhecida como "rede das redes" [
2], constitui-se em uma instância técnica que condensa uma
série de características do
cyberspace,
conceito que lhe é
anterior. Palavra cunhada por William Gibson, no já clássico romance de ficção
científica
Neuromancer (Gibson, 1984), o
ciberespaço [
3] designa, originalmente, o espaço criado
pelas comunicações mediadas por computador ("CMC’s"). Segundo o próprio
Gibson:
"Cyberspace. A consensual hallucination experienced daily by
billions of legitimate operators, in every nation, by children being taught
mathematical concepts... A graphical representation of data abstratcted from the
banks of every computer in the human system. Unthinkable complexity. Lines of
light ranged in the nonspace of the mind, clusters and constellations of data.
Like city lights, receding..." (Gibson, 1984:51)
O termo veio rebatizar e dar novas características ao que se
chamava até então de "esfera de dados". No desenrolar de sua utilização, no
entanto, acabou englobando outros objetos, e dando origem a outras expressões
como cibercultura, ciberpunk e ciberocracia.
Poderíamos afirmar, inicialmente, que o termo
cibercultura abrange os fenômenos relacionados ao ciberespaço, ou seja,
os fenômenos associados às formas de comunicação mediadas por computadores.
Entretanto, o conjunto de objetos abrangidos pelo conceito é mais amplo, sendo
que uma cartografia precisa dos mesmos ainda não é consensual.
De acordo com este espírito, Arturo Escobar (Escobar, 1994),
define cibercultura tendo como pano de fundo as novíssimas tecnologias, em
especial as relacionadas à comunicação digital, à realidade virtual e à
biotecnologia [
4]. A natureza desta
definição faz com que a cibercultura seja considerada a partir da perspectiva da
análise da tecnologia, passando a abranger os fenômenos associados às novas
tecnologias de ponta e à nova "tecnologia intelectual" engendrada pelo
computador, conforme veremos a seguir.
Esta definição pode ser avaliada em relação à obra
Neuromancer: de fato, o seu desenrolar ocorre tanto na vida "real"
como na realidade virtual criada pelos computadores envolvidos na trama. Vários
dos personagens possuem seus corpos alterados e "hiper-realizados" por implantes
artificiais, tanto de natureza biológica quanto eletrônica e também mista.
Durante a ação, os personagens entram em contato com drogas de fácil aplicação e
efeitos imediatos, que oferecem novos estados de consciência e percepção.
Neuromancer, desta forma, desenha o retrato de um futuro onde a vida
humana será fortemente permeada pela intervenção da tecnologia, e onde a questão
da identidade individual passa a ser, exacerbadamente, um ato de escolha,
determinação pessoal e, principalmente, consumo:
The bartender’s smile widened. His ugliness was the stuff of
legend. In age of affordable beauty, there was something heraldic about his lack
of it. The antique arm whined as he reached for another mug. It was a
russian military prosthesis, a seven function force-feedback manipulator, cased
in grubby pink plastic. (Gibson, 1984: 4, grifo meu)
Muito do que Gibson esboçou em
Neuromancer já migrou das
páginas de ficção científica para as matérias das revistas especializadas em
informática e divulgação científica. Mais ainda, com o crescimento exponencial
da Internet, a mídia de massa passou a tematizar esta nova "revolução
tecnológica", trazendo para as camadas médias, sempre ávidas por "atualidade",
os temas da conectividade, da realidade virtual, da globalização das
comunicações. É sobre os efeitos destas novas tecnologias no imaginário do homem
que a reflexão sobre a tecno-ciência [
5] irá
se debruçar.
O conceito de ciberespaço pode ser melhor compreendido à luz do
esclarecimento que Pierre Levy faz à respeito do
virtual (Levy, 1996). Segundo ele, o virtual é uma
nova modalidade de
ser, cuja compreensão é facilitada se considerarmos o
processo que leva à ele: a
virtualização.
A tradição filosófica utiliza o par de oposição potência/ato
para a reflexão sobre os estados possíveis do ser [
6]. Assim, uma semente é uma árvore em potência, que se
atualiza no momento em que se transforma em árvore. Levy, considerando esta
análise insuficiente para dar conta da questão da virtualização, passa a
utilizar a distinção elaborada por Deleuze entre
possível e
virtual. O possível associa-se ao real, na medida em que aquele é este
sem a existência. A realização, passagem do possível para o real, portanto, não
envolve nenhum ato criativo. A diferença entre possível e real reside no plano
da lógica, consistindo em um mero quantificador existencial
O virtual, por outro lado, distingue-se do atual
na medida em que, diferentemente do possível, não contém em si o real
finalizado, mas sim um complexo de possibilidades que, de acordo com as
condições e os contextos, irá se atualizar de maneiras distintas. O
objetivo de Levy, ao fazer esta migração entre o par de conceitos possível x
real para a díade virtual x atual, é conseguir associar ao processo de
atualização o devir, com a interação entre o atual e o virtual. De
acordo com o autor:
"O real assemelha-se ao possível; em troca o atual em nada se
assemelha ao virtual: responde-lhe." (Levy, 1996: 17, grifo do
autor)
O virtual, portanto, não pode ser compreendido como o possível,
pois este já está determinado, mas sim como um "complexo problemático" que
dialoga e interaje com o atual, transformando-se de acordo com as peculiaridades
de cada contexto. O seu exemplo por excelência é um programa de computador, no
que diz respeito à sua interação com um operador humano [
7]. Nele, os resultados finais (as atualizações) não estão
determinadas, pois serão resultado do
processo de atualização, efetivado
pela interação com a subjetividade do operador.
O ciberespaço pode ser, portanto, considerado como uma
virtualização da realidade, uma migração do mundo real para um mundo de
interações virtuais. A desterritorialização, saída do "agora" e do "isto" é uma
das vias régias da virtualização, por transformar a coerção do tempo e do espaço
em uma variável contingente. Esta migração em direção à uma nova
espaço-temporalidade estabelece uma realidade social virtual, que,
aparentemente, mantendo as mesmas estruturas da sociedade real, não possui,
necessariamente, correspondência total com esta, possuindo seus próprios códigos
e estruturas.
A emergência da cibercultura provoca uma mudaça radical no
imaginário humano, transformando a natureza das relações dos homens com a
tecnologia e entre si. Pierre Levy (Levy, 1995) defende uma interrelação muito
próxima entre subjetividade e tecnologia. Esta influencia aquela de forma
determinante, na medida em que fornece referenciais que modelam nossa forma de
representar e interagir com o mundo. Através do conceito de "tecnologia
intelectual", Levy discorre sobre como a tecnologia afeta o registro da memória
coletiva social. As noções de tempo e espaço das sociedades humanas são afetadas
pelas diferentes formas através das quais este registro é realizado.
O imaginário humano sempre esteve atrelado à tecnologia, sendo
que não podemos pensá-la diferenciada da sociedade, como um elemento isolável,
mas sim considerarmos um mundo permeado pela tecnologia, que influencia as
formas de sociabilidade. A partir da perspectiva das tecnologias intelectuais,
Levy traça um histórico da humanidade, mostrando de que forma cada uma delas
influenciou sua época [
8], até chegar à
mudança que estamos vivendo hoje em dia:
"No caso da informática, a memória se encontra tão objetivada
em dispositivos automáticos, tão separada do corpo dos indivíduos ou dos hábitos
coletivos que nos perguntamos se a própria noção de memória ainda é pertinente"
(Levy, 1995: 118) [
9].
Ainda inseridos no contexto da linearidade instaurada pela
escrita, que determinou os moldes da racionalidade ocidental, vemos emergir, a
partir do surgimento dos meios informáticos, uma nova maneira de ver o
mundo:
"(...) vivemos hoje em dia uma destas épocas limítrofes na qual
toda a antiga ordem das representações e dos saberes oscila para dar lugar a
imaginários, modos de conhecimento e estilos de regulação social ainda pouco
estabilizados" (Levy, 1995: 17)
Podemos resumir a compreensão de Levy das mudanças acarretadas
pelas novas tecnologias intelectuais a partir do esquema:
mudanças nas tecnologias intelectuais: |
mudanças no imaginário |
: |
mudanças na forma como as pessoas se relacionam entre si e com a própria
tecnologia
|
|
surgimento de novos meios de sociabilidade |
: |
são diferentes, porém estruturalmente semelhantes |
è |
exigem novos códigos, uma apropriação
diferenciada |
As tecnologias intelectuais relacionadas à informática estão
trazendo à tona uma modalidade de pensamento eminentemente imagético e
desterritorializado. Os ícones e imagens, característicos do pensamento mítico
associado à tecnologia intelectual da oralidade (Levy, 1995: 82), voltam à tona.
Esta imagética, porém, alimentada pelos recursos tecnológicos, adquire mais duas
dimensões: a espacialização, a conquista da terceira dimensão, e a temporalidade
própria. Lev Manovich, em um artigo muito interessante (Manovich, 1996),
argumenta sobre as consequências da espacialização da Internet [
10] nas narrativas e na concepção de
tempo:
"The computerization of culture leads to the spatialization of
all information, narrative, and, even, time. Unless this overall trend is to
reverse suddenly, the spatialization of cyberspace is next. ‘(...) future online
systems will be characterized by a high degree of interaction, support for
multi-media and most importantly the ability to support shared 3D spaces. (...)
users will not simply access textual based chat forums, but will enter into 3D
worlds where they will be able to interact with the world and with other users
in that world.’ " (Manovich, 1996)
Um dos traços mais marcantes da Internet, e que serve, entre
outros, para marcar sua diferença com outras mídias, é a interatividade. Termo
que, como vários outros (por exemplo, "conectividade", "globalização", etc.),
virou palavra de ordem na campanha publicitária explícita ou implícita da qual a
Internet foi tema [
11], a interatividade
na Internet constitui uma espécie de meta dos ideólogos da rede
[12].
Percebemos que em vários contextos da rede o usuário é chamado
a participar, tanto através do envio intencional de mensagens, quanto pelo
próprio ato de navegar através de links de hipertexto. Conforme Pierre Levy
(Levy, 1996), o hipertexto virtualiza o texto ao transformá-lo em problemática
textual, que só ocorre quando defrontada com subjetividades:
|
A
|
|
A
|
|
V
|
|
A
|
|
pensamento
|
è
|
texto
|
è
|
leitura
|
è
|
hipertexto
|
è
|
leitura |
A: atualização
V:
virtualização
Os dispositivos hipertextuais virtualizam o processo de leitura
ao exteriorizarem, objetivarem as atividades, antes subjetivas, de conexão,
montagem e interrelação. Logo, esta transformação, aparentemente quantitativa, é
de natureza qualitativa: o leitor sempre relacionou o que estava lendo com o seu
passado intelectual, suas lembranças e suas referências, construindo, em sua
consciência, o seu hipertexto privado. O ciberespaço oferece uma nova forma de
estabelecimento desta teia (e aqui o termo "teia" é utilizado intencionalmente:
web), multiplicando o número de links possíveis e tornando, tanto os
links quanto sua interrelação,
externos à consciência do sujeito.
[13]
Assim, mesmo em contextos onde aparentemente não é aplicável o
conceito de sociabilidade, como na leitura de um hiperdocumento, estabelece-se
uma relação entre o leitor e o produtor (distinção, que, conforme Levy, está
cada vez mais pálida). É comum encontrarmos referências explícitas, por parte do
autor, à postura do leitor (diríamos melhor: "navegador") no que se refere à
leitura:
"Você pode continuar lendo o item seguinte - Como fazer
referência a um texto convencional - ou retornar ao Sumário." (extraído de um
documento sobre formas de citação e referência à documentos
eletrônicos)
O trabalho de Levy é importante na medida em que contribui para
a reflexão à respeito da virtualidade, mas, principalmente, no contexto da
abordagem deste trabalho, porque traz para dentro do campo abrangido pelas CMC’s
o dinamismo e a possibilidade de mudança, características essenciais da
cultura.
A cibercultura e a Antropologia
O ciberespaço, ao constituir-se em um novo espaço de
sociabilidade, acaba gerando novas formas de relações sociais, com códigos e
estruturas próprias. Acredito que estes novos códigos não são completamente
inéditos, mas sim uma reformulação e uma ressemantização das formas conhecidas
de sociabilidade, adaptadas às novas condições, tanto de espaço/tempo virtuais,
quanto de agentes sociais dinâmicos, cuja capacidade de metamorfose (Velho,
1994) é levada às últimas consequências. A Antropologia, com seu aporte teórico
orientado para a identificação de representações sociais, é uma disciplina que
se adequa à tarefa de deslindar estes novos códigos.
Jayme Aranha Filho, em seu artigo "Tribos Eletrônicas: usos
& costumes" (Aranha, 1995) aponta oportunamente a radicalidade das duas
posições em que se dividem as opiniões a respeito da Internet, o "cego
entusiasmo" e o "pavor catastrófico" [
14].
Ao sugerir uma postura intermediária entre estes dois pólos, o autor desloca o
foco da análise, da avaliação dos efeitos da Internet como um todo, para o
estudo da forma como ela está ganhando tanta popularidade. Sua hipótese para
esta questão é a de que a rede se difunde tão rapidamente porque estabelece uma
metáfora de totalidade, tendo em seu interior uma replicação das instituições
sociais. Seria, então, através da eficácia de suas "analogias com o mundo" que a
rede se expandiria.
Esta proposição é interessante, pois traz à tona uma
possibilidade de interpretação do fascínio exercido pela versão "mass-media" do
ciberespaço, a WWW. No entanto, creio que a mesma deve ser considerada com uma
certa reserva, na medida em que pode conduzir à pressuposição da passividade do
usuário frente ao que é proposto pelos "donos do sistema". Esta passividade
lembra o trabalho da Escola de Frankfurt, que, no contexto do nascimento da
indústria cultural, previa o fim da cultura "legítima" e apontava os efeitos
ideologizantes das mídias na massa. Várias críticas foram realizadas a estas
colocações [
15], defendendo a
independência simbólica dos sujeitos, que não adotam arbitrariamente valores
alheios às suas culturas, mas sim se apropriam dos mesmos, dando à eles novas
leituras e interpretações. A cibercultura é um campo privilegiado para o estudo
das relações entre mídia/consumidor, ao estabelecer uma nova relação dos
sujeitos com a tecnologia e com um meio cujo nível de interatividade é, até
então, inédito. Análises desta natureza são enumeradas no inventário das
problemáticas antropológicas relacionadas à cibercultura proposto por Arturo
Escobar:
"How do people relate to their techno-worlds (machines,
reinvented bodies and natures)? If people are differently placed in technospaces
(according to race, gender, class, geographical location, "physical ability"),
how do their experiences of these spaces differ?" (Escobar, 1994:
217)
Acredito que a cultura do ciberespaço mantenha uma série de
semelhanças com a cultura "atual" [
16].
Estas semelhanças, sejam elas decorrentes de um projeto intencional [
17], ou do seu próprio desenvolvimento, serão
verificáveis na medida em que esquemas teóricos utilizados para pensar a
sociedade "real" possam ser transpostos com sucesso para a análise das relações
de sociabilidade virtuais. Desta forma, as ferramentas conceituais da
Antropologia social, especialmente as da Antropologia de sociedades complexas,
são adequadas para tratarmos das questões relativas ao ciberespaço.
O ciberespaço não pode ser considerado como homogêneo e
"total". Percebemos que, da mesma forma que em sociedades complexas, a
experiência de alteridade no seu interior é vivida de maneira bastante intensa.
As comunidades virtuais, listas de discussão, grupos de Usenet, sites de
IRC (Internet Relay Chat) inscrevem, no ciberespaço, tribos de interesses e
significados compartilhados. Isto faz com que a compreensão das novas formas de
sociabilidade desenvolvidas pelo ciberespaço passe pelo estudo etnográfico
destas "tribos":
"We can anticipate active discussion on the proper methods for
studying these communities, including questions of on-line/off-line fieldwork,
the boundaries of the group to be studied, interpretation, and ethics."
(Escobar, 1994: 218)
Assim, referenciais analíticos como o desenvolvido por Gilberto
Velho, adequam-se à reflexão sobre a vida no ciberespaço. A criação e mudança
contínua de avatar, por parte de um indivíduo, por exemplo, é a radicalização da
possibilidade de "metamorfoses" vinculadas ao "campo de possibilidades" ao qual
o indivíduo pertence (Velho, 1994: 40-46).
Da mesma forma que o ciberespaço passa, atualmente, por um
intenso e radical processo de colonização [
18], estando em constante mudança [
19], os referenciais teóricos utilizados para pensar as
sociedades complexas precisam ser adaptados e questionados no que diz respeito à
sua adequação a este novo universo simbólico. Ou seja, se por um lado existem
semelhanças a nível estrutural entre o "atual" e o "virtual", originadas,
certamente, pela forma analógica com que este foi estabelecido (Aranha, 1995),
por outro a apropriação deste espaço social virtual por parte de seus
"habitantes" faz com que novas formas de relação social estejam sendo
engendradas.
As particularidades deste novo espaço-tempo fazem com que as
estruturas gerais de determinados esquemas sofram mudanças, no sentido de
adaptarem-se às novas condições. Estas mudanças podem ser tanto de natureza
quantitativa quanto qualitativa. Um exemplo da primeira seria a potencialização
da capacidade de relacionamentos simultâneos que um sujeito pode estabelecer no
ciberespaço. Nos sites de chat da WWW, um usuário pode, abrindo
diversas janelas, manter uma conversação com muitos (e variados) grupos
simultaneamente. Já do ponto de vista qualitativo, a natureza das relações
virtuais possuem várias peculiaridades. Rita Segato afirma (Segato, 1995) que os
diálogos estabelecidos na Internet distinguem-se pelo fato da figura do "outro"
com quem se dialoga não estar presente, resultando que, em casos de competição,
sempre se é vencedor, sendo a Internet "(...) a device created to elude the
experience of failure at all costs" (Segato, 1995: 11).
Até aqui foi feito um apanhado de algumas possibilidades do
fazer antropológico
no ciberespaço. No entanto, uma série de questões
importantes permancem na zona de fronteira entre o atual e o virtual. A forma
como pessoas de diferentes culturas "atuais" vivenciam a virtualidade pode
indicar muito a respeito de suas próprias culturas. A forma como os indivíduos
passarão a representar a experiência de múltiplo pertencimento proporcionada
pela Internet, e mais uma série de outras questões pertinentes, ainda estão em
aberto, pelo menos no que diz respeito ao caso brasileiro [
20], e só poderão ser respondidas através de um trabalho de
levantamento etnográfico minucioso nas diferentes tribos que povoam o
ciberespaço.
A sedução e o namoro no ciberespaço
A partir da perspectiva de se realizarem estudos comparativos
entre formas de sociabiliade "virtuais" e "atuais" no contexto brasileiro, o
conjunto das práticas e representações envolvendo relações afetivas é
privilegiado como objeto de estudo. O terreno compreendido pelas formas de
afetividade, sedução, relações amorosas e correlatos já possui alguns
levantamentos realizados no Brasil. Além do mais, estudos recentes à respeito do
tema em classes populares (Boff, 1994) levam em consideração a intervenção de
mídias eletrônicas no processo de sedução amorosa [
21].
Na Internet brasileira existem uma série de sites
específicos sobre namoro, considerando apenas aqueles orientados para uma visão
menos sexualizada da expressão, ou seja, que não fazem referência explícita a
possíveis interesses sexuais dos usuários. Se levarmos em conta os sites
relacionados à relações mais "pragmáticas", como os de classificados sexuais,
nossa lista aumentaria consideravelmente. Partindo da hipótese de que as duas
modalidades de "procura" amorosa possuem características diferenciais, parece-me
conveniente delimitar o caso de estudo a apenas uma, no caso deste esboço de
projeto, aos encontros para "namoro".
A natureza das relações estabelecidas via Internet, a forma
como elas são representadas pelos envolvidos, o desenrolar das histórias de
amor, as formas, os limites e a estrutura de negociações do "cibersexo", todas
estas são questões que podem ser estabelecidas a partir deste universo de
estudo. As modalidades de articulação de identidades – "avatares" – nas relações
onde o encontro físico é pouco provável (por questão de distância geográfica ou
pela própria natureza da relação) também constitui-se em um terreno fascinante
de interrogações. A partir da extrema facilidade na manipulação e criação de
identidades virtuais, o jogo de sedução adquire novas e instigantes facetas. O
estudo a respeito da construção e manipulação de identidades pessoais através de
avatares já possui uma certa trajetória a nível nundial [
22]. Um pequeno exemplo disto pode ser encontrado em uma
página mantida por um provedor de acesso em São Paulo, dedicada a ensinar os
usuários a "saber como se comportar no IRC, na web, nos newsgroups, na
rede,(...)" [
23], através da interação com
uma colunista fictícia ("Déborah Gralha"), usando uma linguagem
descontraída:
"G I F D E S A N I M A D O
Conheci um cara no IRC há três meses. Nos demos super bem,
nossos gostos são parecidos e acabamos nos apaixonando. Um dia o fogo foi tão
forte que acabamos fazendo cybersex. Mas ele sempre inventava uma desculpa
quando eu pedia pra ele me mandar uma foto. Semana passada ele finalmente
mandou: o cara é um bagulho!! O que eu faço?
"Internauta desconsolada", MT.
Querida Beldade on line,
Mas afinal onde mora esse príncipe? Se não for na sua cidade,
delete a foto dele, cate uma do Tom Cruise e aproveite as maravilhas do
mundo virtual! :) " (O nome de "Tom Cruise" está linkado à um site com
fotos do ator).
Uma possibilidade de delimitação do campo seria a observação
(participante ou não) de salas de chat específicas sobre o tema. A
hipótese inicial é que, a despeito da possibilidade de contínua renovação da
identidade dos frequentadores, os mesmos mantém uma identidade fixa por sala ou
por horário de visitação aos sites, e é através desta identidade que se
estabelecem os contatos. De fato, em mais de uma observação às salas de chat
foram percebidas referências à avatares que não estavam presentes.
O estudo das redes de relações estabelecidas pelos
frequentadores de determinado
site pode revelar a forma como se processam
os primeiros contatos e as aproximações dos possíveis pares. Diante da notória
(ou pelo menos alegada com frequência, pelos internautas homens) desproporção
entre os sexos dos usuários da rede, parece ser comum a circulação de
informações a respeito de horários e locais frequentados por mulheres [
24].
Como reflexo desta necessidade, uma ferramenta bastante
interessante foi colocada à disposição dos internautas que buscam sua "alma
gêmea" no
ZaZ: uma base de dados, onde é possível cadastrar-se,
fornecendo informações à respeito de sua personalidade e das características da
cara-metade desejada [
25]. Estas
informações são cruzadas no banco de dados do sistema e uma lista de pessoas
cujas características "conferem" com o desejado é gerada. Também aqui um serviço
já existente antes do advento da popularização da Internet (a busca de pares
através de cruzamento de dados, realizado por empresas especializadas) é
transposto ao ciberespaço, mantendo suas características básicas e adquirindo
novas propriedades, na medida em que se adequa ao novo meio.
Outra possível fonte de dados são as páginas pessoais. A partir
da navegação aleatória em algumas home-pages pessoais localizadas nos
sites que fornecem serviços de encontro, é possível constatar,
preliminarmente, que o leitmotiv que orienta o design e o conteúdo das
mesmas é a captura da simpatia do navegante para com o autor da página. São
recorrentes as afirmações informando o desejo do autor em conhecer pessoas,
estabelecer novas amizades, etc. Em alguns sites a construção da página é
automatizada, ficando o autor com a tarefa de compor o texto e escolher o padrão
de fundo e as ilustrações da página, a partir de um conjunto pré-estabelecido. A
observação das escolhas feitas pelos usuários a partir destes conjuntos,
associada à análise do próprio texto da página, podem ser reveladoras das
representações e expectativas dos mesmos em relação aos "efeitos" das páginas.
Neste sentido os aportes teóricos provindos da Antropologia visual seriam de
grande utilidade para estes tipos de análise, bem como o referencial
metodológico de Pierre Bordieu, no que diz respeito às escolhas como
determinadoras dos habitus (Bourdieu, 1984).
Um estudo desta natureza poderia trazer à tona os códigos que
estes sujeitos/avatares utilizam em sua vivência no ciberespaço, revelando como
esta vivência é representada e em que medida ela estabelece, ou não, novas
formas estruturais de sociabilidade.
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http://www.ibase.org.br/~esocius/anais.html>.
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Notas:
1. A Internet, neste
contexto, é uma das manifestações (sem dúvida, a mais abrangente) dos fenômenos
relacionados ao ciberespaço. Logo a seguir discutirei a questão de terminologia
(que, de fato, trata-se de uma questão conceitual) envolvida neste campo de
estudo.
2. A Internet, em
decorrência (pelo menos a nível técnico) da flexibilidade, eficiência e
gratuidade de seu protocolo (o TCP/IP) acabou englobando todas as redes de
computadores existentes até então. No entanto, nunca é demasiado recordar que
redes de computadores com características de ciberespaço já existiam
antes do advento da Internet.
3. Por questão de
uniformidade, passarei a utilizar os abrasileiramentos dos termos: ciberespaço,
cibercultura, etc.
4. A inclusão da
biotecnologia na definição de cibercultura é conveniente, na medida em que toda
uma categoria de fatos (os relacionados aos implantes artificiais, manipulação
genética, etc.) passa a ser considerada no que diz respeito às suas relações com
o imaginário contemporâneo.
5. Diante da redefinição do
quadro epistemológico geral ocorrida nos últimos anos, alguns autores defendem
que a distinção entre "ciência" e "tecnologia" está cada vez mais indefinifa,
apontando para um quadro que vem sido chamado de "tecno-ciência". Infelizmente
os limites deste trabalho não nos permitem aprofundar esta importante
questão.
6. Esta distinção tem na
filosofia aristotélica seu referencial de discussão.
7. Entretanto, poderíamos
questionar em que medida os infoboots (robôs virtuais, que navegam pela Internet
realizando tarefas determinadas, interagindo com outros programas-robô) não
constituem uma excessão à isto.
8. Ele enumera três
tecnologias intelectuais que se sucederam: oralidade, escrita e informática,
descrevendo como cada uma influenciou, a seu modo, o imaginário de sua
época.
9. Sobre a objetivação da
memória, ver nota , a seguir.
10. A partir do
surgimento dos "mundo virtuais" em 3-D, criados com VRML (Virtual Reality
Modeling Language).
11. Por ocasião do
lançamento da Internet comercial no Brasil, por exemplo, ocorreu uma verdadeira
"febre" da mídia à respeito, que ofereceu muito espaço e atenção ao fato. Este é
um fenômeno que pode ser analisado no limite entre as duas abordagens utilizadas
para falar sobre a Internet, que mencionei acima: por um lado, um reflexo na
mídia do interesse e curiosidade despertados pela "novidade", por outro uma
manipulação da mesma, tentando consolidar este novo meio de comunicação. Não é
inoportuno recordar que o grupo RBS, detentor de um verdadeiro monopólio nas
comunicações sociais no sul do Brasil, também é proprietário de um dos maiores
provedores de acesso do país, a Nutec Net.
12. Em conversa informal
com uma web designer e web master de um pequeno provedor de acesso de São Paulo,
pude constatar o quanto a interatividade constitui-se numa meta a ser alcançada
pelos "construtores" da Internet. Na ocasião, a informante comentou que este é
um tema recorrente e motivo de debates na lista de discussões (via e-mail) dos
web designers brasileiros. O tema também é recorrente em publicações
especializadas.
13. A respeito da
"externalização" da subjetividade realizada pelo ciberespaço, um exemplo muito
interessante e que, sem dúvida, mereceria um estudo mais aprofundado, é o
serviço oferecido pela Kodak: os usuários podem armazenar suas fotos digitais em
um computador da empresa, utilizando as facilidades e os recursos de um software
que organiza álbuns de família e torna as imagens disponíveis, via Internet, às
pessoas interessadas.
14. A colocação do autor
é semelhante à tese geral que Umbero Eco defende em "Apocalípticos e Integrados"
(Eco, 1979) no que diz respeito às posturas teóricas em relação à cultura de
massa. De fato, como a Internet, "ponta de lança" tecnológica da cibercultura,
assume cada vez mais a forma de um
mass media, as homologias entre ambos
referenciais analíticos são inevitáveis.
15. Dentre elas, a
realizada por Ondina Fachel Leal (Leal, 1986) é especialmente adequada ao
contexto da Internet por analizar a forma como um produto do
mass media é
representado pelos consumidores. A autora realizou uma "etnografia de audiência"
em telespectadores brasileiros de telenovela, demonstrando que os mesmos
reelaboram os bens da indústria cultural a partir de seus próprios códigos
culturais.
16. Utilizo aqui o termo
"atual" no sentido relacionado à "virtual", conforme Levy (ver página
*).
17. Hermano Vianna afirma
que o "ianquecentrismo do ciberespaço seria o resultado de um projeto
civilizatório norte-americano": "A grande rede é uma espécie de campo de ensaio
para os princípios ‘nomádicos’ da subjetividade radicalmente individualista e da
vida social estruturalmente individualizada" (Hermano, 1995).
18. Segundo os números
indicados na Internet domain survey realizada pela Network Wizards
<http://www.nw.com/>, nos últimos 3 anos o número de hosts na Internet vem
crescendo a taxas anuais superiores a 150%. Conforme os dados de janeiro de 97,
o número de hosts pertencendo ao domínio
br representava 0,47% do total
de hosts da Internet. Cabe salientar que o nome do domínio não indica,
necessariamente, que o
site esteja, fisicamente, no Brasil, da mesma
forma que podem haver
sites no Brasil que não pertençam ao domínio
br.
19. O ritmo frenético em
que são desenvolvidos novos programas e criadas novas formas de interagir com o
ciberespaço é um indicador notável deste fenômeno. Um estudo da trajetória
destas interfaces, do ponto de vista de seus desenvolvedores, seria de extrema
conveniência no momento em que estamos passando. Um trabalho semelhante, no
contexto norte-americano, foi desenvolvido por Diana E. Forsythe (Forsythe,
1997).
20. No que se refere à
pesquisa sobre sociabilidade na Internet, creio que se possa afirmar que o
Brasil encontra-se um tanto defasado. Certamente este atraso pode ser atribuído
ao fato da própria Internet só ter ganho impulso há poucos anos. Em uma pesquisa
rápida no arquivo do ano de 95 da lista de discussão
anthro-l, encontrei
uma série de referências à trabalhos etnográficos sendo desenvolvidos na
Internet.
21. Em sua dissertação,
Adriane Boff (Boff, 1994) analisa a "expressão dos afetos" em um grupo de
classes populares, tomando como ponto de partida o programa radiofônico chamado
"Namoro no Rádio", onde os futuros pares vão buscar sua cara metade.
22. Um exemplo destes
trabalhos é Donath, 1997. A autora faz um estudo etnográfico na usenet, mapeando
a forma como são manipuladas as identidades.
23.
<http://www.thats.com.br/estar/deborah>
24. Em mais de uma
situação informal pude constatar esta busca pelo sexo oposto através de troca de
informações relatada por usuários homens.
25.
<http://www.zaz.com.br/almas/index.htm>. Atualmente a base conta com mais
de 13.000 registros.